A CONDUTORA



                 Devia ter quase 100 anos, não, estou a exagerar. Mas poderia ser, com aquele cabelo branquinho. Rugas, já não havia, mas gretas, profundas no seu rosto a denunciarem que já passava há muito da idade de conduzir. Talvez seja isto uma convenção apenas, ou preconceito.

                    Seu olhar alinhava-se com a altura da direção. 
                    Só vi sua cabeça, seu rosto atento ao fazer a curva, devagar.

Porque fazemos tudo tão devagar depois de nos tornarmos idosos?
Não tenho 90, nem setenta, sequer, mas faço tudo mais devagar. 
Mais pela necessidade de cuidar-me, também por conta das dores que se instalaram, e de que tenho esperança de me despedir, logo. Quando é preciso, porém sou capaz de subir rápido os 18 degraus que separam o rés do chão do primeiro andar, onde vivo. E depois, sento-me a recuperar do esforço. Invejo quem sobe de dois em dois, corre a descer… lembro como era bom correr, nas escadas, na rua. Sinto ainda o vento a passar no meu rosto, a por sorriso nos meu lábios…. Correndo comigo.

A senhorinha de imensa cabeleira branca fez-me pensar. 
Na vida, no percurso até envelhecer. 
No envelhecer… quando começamos a envelhecer, não paramos mais.

Envelhecer não é algo que se consiga ver, mas sentir. 
Olho-me no espelho todos os dias, procurando alguma diferença no meu rosto, 
algo que não estava no dia anterior. 
Não vejo, envelheço discretamente, sem alarde, silenciosamente. 

Às vezes, alguns sinais me assustam.. perda de cabelo, meu Deus, será de velhice ou preciso me preocupar com isto? 

Outras vezes, observo apenas. 

Dentro, a Alma continua com a energia da juventude, mas com uma profundidade e serenidade que só a velhice pode dar.

Há momentos que me sinto como a senhorinha, feliz por conduzir minha bike, meus pensamentos, minha vida. 
Feliz por fazer o que quero, ir onde gosto, com quem gosto e poder dizer não, simplesmente porque não quero.

Claro que há vantagens em envelhecer. 
E a maior é a capacidade de aceitar que o percurso da vida sempre nos vai levar a este momento em que sentimos: estou envelhecendo, não sou a mesma. 
O que é bom, claro, desde que nasci vou me diferenciando, do bebê inocente, indefeso à criança curiosa, ousada, à adolescente insegura, introspectiva, à jovem adulta inexperiente a fazer más escolhas. 
Depois mãe, amadurecendo querendo ou não, pelas estradas da vida.

Quando nos tornamos idosos - a cada dia este momento é adiado… a mídia nos quer iludir, chamando-o de melhor idade, enaltecendo as vantagens… tempo para viajar, estar com os amigos… , é também tempo de sentir que viemos ao mundo sozinhos e assim partiremos. 

A experiência é única e é preciso dar a ela um sentido maior, um significado que preencha este espaço vazio no coração, quando se percebe que cada um tem sua vida, os filhos, os amigos, cada um tem sua trajetória e é bom que assim seja.

Os amigos partilham de alguns momentos, mas lá dentro, no mais profundo da Alma, há uma compreensão solitária do sentido da vida, do significado do próprio percurso. 
Ou não. 

Somos capazes de envelhecer sem perceber nada disso, aí a vida é capaz de ficar insuportável. 
Já vi idosos revoltados com a própria vida, como se o percurso não tivesse sido sua própria escolha.

Escolhas. Não se escolhe envelhecer. 
Isto é apenas a consequência de se viver mais. 
Ah, sim, também eu quero viver mais, mas a cada dia é preciso preparar o novo dia, um futuro muito próximo. 
Cada escolha precisa ser muito cuidadosa, porque vai trazer efeitos imediatos e já não há tempo a perder com escolhas erradas ou conserto de equívocos.

Lembro que quando completei 50 anos, tive uma espécie de frenesi… uma urgência em viver, não podia perder um minuto de vida, dali para a frente. 
A sensação de valor de cada momento fez-me abrir mão de ressentimentos, de picuinhas, de chateação por nada, de estremecimentos com pessoas de que gosto e mais ainda com quem cruza meu caminho, talvez por uma vez apenas. 
Desde este dia, olhava mais para dentro que para fora. 
Cuidava de cada nova decisão, para que fosse a melhor.

Hoje percebo que ainda estava longe de saber qual era a melhor decisão. 
Creio que as melhores decisões serão sempre as próximas.

A senhorinha que conduzia, imagino, que se sentia feliz, discretamente, um tipo de regozijo por ainda conduzir-se, no seu automóvel ou fora dele. 
Alguns filhos, quando nos vêem assim e calculam que já envelhecemos o suficiente, desejam retirar nossa autonomia, independência, liberdade mesmo, com a justificativa de protegerem-nos de nós mesmo, é o que pensam. 
Não nos querem a conduzir, a fazer compras sozinha, a tomar decisões, a viajar sem eles…

Sei que é difícil entender que este momento é o melhor momento de uma pessoa. Desfrutar de liberdade, sem os compromissos da juventude, da vida adulta com tantas coisas a que responder. 
Não. 
Idosos, podemos acordar, quando bem nos apetecer. 
Bom, é claro que o dia é mais longo se sairmos da cama cedo. 
Mas pode ser um grande momento de prazer, abrir os olhos e pensar: meu dia é todo meu, não tenho que nada… só o que desejo. 
Mesmo que este desejo seja o de ter compromissos. 
Mas é puramente uma escolha, que será prazerosa, supostamente.

Fico pensando na condutora de cabeleira branca… onde será que iria àquela hora, o que estava prestes a fazer, ou quem iria encontrar… seu semblante estava sério, mas sereno, atento. E o olhar, focado.

Quando estou conduzindo minha bike, as condições são outras, posso estar mais solta, e me dá prazer respirar profundamente o ar aromatizado por tanto verde e cores a minha volta, me dá prazer o esforço nas ladeiras e o descanso nas descidas… olhar as pessoas que passam, as crianças na ciclovia com mini trotinetes, triciclos desgovernados..

Gosto de sentir-me viva, capaz do esforço da pedalada, capaz de sorrir por esta escolha. 
Quando deixo minha magrela na estação para uma outra empreitada, sorrio com a Alma, por ter sua companhia que me aguarda, sem reclamar, sem apressar-me, calada e parceira. 
Ah mas é apenas uma bicicleta. 
Não. 
Os objetos que nos servem ou que nos acompanham tem sua alma também. 
Por isso agradeço sempre que a encontro a me esperar e voltamos para casa. 
Minha magrela.. é uma parceira de fé. 
Sinto que está ali para facilitar meu percurso, físico e espiritual.

A experiência de gratidão que tenho quando pedalo por aí, a liberdade que me envolve, a imersão no prana divino, sem antes, nem depois.. é algo inexplicável e profundamente revelador.

Envelheço a cada dia e amo minha vida cada dia mais. 
Quero fazer coisas que nunca fiz, ou que não fiz mais, por falta de tempo. 
Quero ler, estudar, aprender tantas coisas que existem para saber.
Angustio-me também, com tantos interesses, não vai dar para fazer tudo. 
Preciso de outras vidas.

Recorro a minha cena favorita, construída ao detalhe na minha mente: uma casa como sonhei e que, surpreendentemente, encontrei perto daqui. 
Meu piano na sala/biblioteca que abre para uma varanda cheia de flores onde o sol entra pela manhã e a lua, à noite. 
Para onde vou nas noite de insônia, perscrutar o céu ou encontrar a música escondida no teclado, lembrando meus dedos dos noturnos e sonatas da adolescência.

E fico ali, feliz, em silêncio. 
Tão feliz que poderia partir em um destes momentos, em paz. 
Tão grata pelo caminho que fui traçando, escolhendo, às vezes deixando ser escolhido. 
Mesmo assim, sinto-me feliz e grata. 
E cada minuto é um minuto a mais tão valioso, quando a água para um sedento, a comida para quem tem fome.. tenho sede e fome de vida, mas também sei que a vida está em mim e sempre estará.

As lágrimas escorrem pelas minhas rugas, ainda não tenho gretas. 
Não sei se de felicidade ou de dor. 
Queria mesmo é ter um amor verdadeiro, agora, para sorrir e enxugar este rio que desce pelos veios do meio rosto e ver em mim a Alma que não envelhece nunca.




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