A AMIGA DA MINHA MÃE
A AMIGA DA MINHA MÃE
Depois de muito adiar, decidi por em prática a limpeza do chão da cozinha. Demorei para por-me em ação porque teria que escovar ajoelhada e não estava segura de que meus joelhos apreciariam tamanho desconforto.
Munida do necessário e da determinação, mais importante que tudo, pus-me de joelhos, produto no chão e escova na mão. Comecei a esfregar com vigor o piso, especialmente, entre as lajotas. Quando realizo trabalhos assim, solitários, minhas memórias são ativadas, memórias tão distantes, quanto mais for primitivo o trabalho. Sim, escovar o chão no século XXI é algo primitivo. Minha avó o fazia com frequente. Era assim naquela época.
Movimentando a escova com força para frente e para a trás, pensei na amiga da minha mãe.
Minha mãe adolescente, teve um amiga. Chamava-se Jussara. Era um pouco mais velha e não tinha uma casa e uma família como minha mãe. Lembro que ouvia as histórias da Jussara, pelas lentes adolescentes de minha mãe, que a tinha como um modelo de determinação, de ousadia.
Jussara também esfregava o chão, de joelhos, para viver onde vivia. Trocava o seu trabalho por um lugar onde comer e dormir. Queixava-se para minha mãe que tinha os joelhos escuros, sempre.
Jussara partilhava com minha mãe seus sonhos de ter outra vida e sua amargura pela que tinha. Introduziu minha mãe no mundo das fotonovelas, dos amores românticos..dos sonhos. Não creio que minha mãe ousasse sonhar assim.. a repressão de sua mãe, minha avó, alcançava o lugar onde moram os sonhos.
Fico a imaginar que ouvir os sonhos de Jussara era também uma forma de sonhar e sempre que podia ia até a casa onde Jussara esfregava o chão e vivia. Imaginar minha mãe adolescente, assustada, insegura em busca de alguém que lhe pudesse contar sobre o mundo emociona-me às lágrimas.
Sinto sua fragilidade estampada em seu comportamento. Imagino o brilho em seus olhos ao ouvir as histórias de Jussara que voava muito alto em seus sonhos. Talvez sonhasse com um príncipe que a tiraria daquela vida.
E minha mãe? Seria capaz de sonhar com um príncipe que a levasse para uma vida mais feliz?
Não creio.
Muitos anos depois, eu adolescente, minha mãe ainda falava de Jussara e contou-me que a tinha ido visitar, sim, antes de eu nascer.
Jussara vivia cercada de gatos, muitos gatos, em todos os espaços da pequena casa em que vivia. Envelhecida e só.
Sentia na voz de minha mãe uma dor contida, camuflada, de saber que nunca houve príncipe na vida de Jussara, que estava sozinha e sempre esteve.
Cresci e nunca mais minha mãe falou de Jussara, sua amiga. Fico a pensar… o que será que lhe aconteceu, depois da visita da minha mãe? E tenho vontade de ter conhecido Jussara e ter ouvido suas histórias, seus desejos, sua imaginação sobre uma vida linda, cheia de amor.
Queria ter ouvido as historias e sonhos de minha mãe… mas ela se foi sem me contar.
Depois de uma faxina.
17 de junho de 2023
2 anos e 2 meses e 2 dias depois que minha mãezinha se foi.
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