TRÊS MARIAS E O PANETONE
AS TRÊS MARIAS - SÓ FALTA O PANETONE
Quando cheguei, o leito que me coube foi o mais distante da janela e da porta que abria para uma enorme varanda.
No leito ao lado mesmo da janela havia uma senhorinha idosa, pra lá de 80 anos. Já estava ali há mais ou menos um mês antes de eu chegar. Era de uma cidadezinha pouco distante de Cortina D’ampezzo, onde estávamos.
O quarto era grande e bem iluminado, a vista da varanda era mesmo espetacular: montanhas de cores que mudavam com o dia, às vezes muito verdes, outras, gris, à noite, fantasmas sob a neblina.
Era verão, então os dias, quase que invariavelmente, eram ensolarados e as vidraças filtravam os raios do sol que inundavam de luz o espaço.
Para mim era uma verdadeira magia.
No leito mais perto do meu havia outra senhora, idosa, mas não tanto. Uma siciliana cuja fala parecia pedaços de pedrinhas catados na rua e jogados ao acaso. Dura, seca, irregular. Nada se compreendia desses pequenos cacos. Seu estado de espírito acompanhava, falava de repente, como um dardo disparado em qualquer direção. Ia rijo, mas sem destino certo.
Aprendi a deixar passarem, esquivar-me dos golpes. Não respondia, já que não se dirigia a mim, diretamente, nem a ninguém. Apenas disparava.
De semblante sempre fechado, olhos semicerrados, acompanhava sorrateiramente, todos os movimentos do quarto.
A primeira senhorinha era um doce de pessoa. Esqueceu-se do sorriso, sempre na sua face, não apenas nos lábios. Tinha os olhos resignados, serenos, sorridentes.
Éramos ali três Marias. A senhorinha não lembrava bem o seu nome, depois de Maria. A outra, era Maria Tereza, se não me engano.
A varanda me fascinou assim como um amor à primeira vista. Andando devagar, respeitando meus limites pós operatórios, aproximei-me da porta e abri. Um cenário fantástico estava bem ali, ao alcance dos olhos e da alma. A rua embaixo era silenciosa, pouco movimento, apenas o próprio do hospital.
Saí e percorri o espaço que marcava os limites do lado do prédio. De ponta a ponta, eram inúmeras portas como a que eu abrira. Todos os quartos, daquele lado, podiam abrir-se para a natureza mágica que se descortinava.
No dia seguinte, meu plano de passeios diários pela varanda foi abortado. Proibido andar por ali, riscos de um prédio antigo com manutenção precária. Colocaram uma faixa amarela e preta, como aquelas que isolam a cena de um crime. A faixa estabelecia um limite entre os quartos e a varanda. Nao era permitido ultrapassá-la. Frustração e tristeza derramaram-se sobre mim. Foi como roubar um pedaço da cura. Da minha, posso dizer, pois não me pareceu que este cenário era tão apreciado pelos outros pacientes.
Imaginei uma forma de respeitar a ordem e de estar na varanda, sem estar. Aproximei duas cadeiras, porta aberta, colocadas aquém da faixa amarela. Ficava colada ao tórax de quem estava na cadeira. Mas o corpo estava ao sol, na varanda.
Chamei a senhorinha idosa para sentarmos e tomarmos sol. Para minha surpresa, a senhorinha não tinha ideia do que havia desse lado das vidraças. Pensava que era apenas a rua do hospital.
Sentamos, o sol banhando nosso corpo, pés livres de chinelos… o calor invadia meu corpo como uma carícia intensa que amolece o coração e nutre a alma.
Passou a ser um hábito, colocar nossas cadeiras ao sol pela manhã, todos os dias. Nesses momentos, a senhorinha contava-me partes de sua história, viúva aos vinte e poucos anos, criou os filhos sozinha, trabalhando muito e dormindo pouco.
Tive a sensação de que a dureza da vida que levou, recompensou-a com essa serenidade que trazia sempre colada no semblante e nos seus gestos, concentrada, lenta, independente, de certa forma. Assim o fora, desde que teve sua vida e a dos filhos por sua conta e risco. E conseguiu.
Almoçávamos juntas na pequena mesa quadrada colocada em frente ao armário. Das três cadeiras, apenas duas eram ocupadas. A siciliana não comia conosco. Observava-nos do seu posto, em seu leito. Eu observava os gestos da minha companheira de almoço, gestos, que às vezes revelavam alguma dificuldade em abrir o envelope de azeite ou de queijo ralado, ou mesmo ao descascar a banana, que fazia-o pela parte de baixo, a mais difícil. Agradecia, mas recusava a ajuda que eu lhe oferecia, demorava mas conseguia fazer o que precisava.
A comida no hospital era bizarra, o menu parecia um atentado a qualquer bom senso nutricional, especialmente para convalescentes. Enquanto eu me surpreendia e nao comia muitas coisas, a senhorinha sorria e dizia ‘em casa é melhor’ (mas como estamos aqui… era o que eu subentendia ) sorria e comia sua comida, sem gosto, sem cor, sem cheiro, sem reclamar.
Estive quinze dias nesse quarto, convivendo com as duas senhoras. A do leito perto do meu recebia o marido na hora do almoço que levava outra comida para ela. Às vezes, dava-lhe na boca, sentada na cama! Relação estranha… ela sempre com a cara amarrada, palavras ríspidas e curtas.. e ele, cuidando dela, docemente.
Encontrávamos também na sala de fisioterapia todas as manhãs, às vezes fazíamos ao mesmo tempo, outras, eram ocupantes de outros quartos que partilhavam comigo a hora no ginásio. Nessas manhãs conheci vários parceiros de cirurgia, outros recuperando-se de cirurgias diferentes, mas todos com a mesma rotina. Café, exercícios, caminhadas.. alguns, almoço.. visitas, fisioterapia, jantar e noite de sono.
Invariavelmente, eu saía pela porta do hospital e sentava-me em um banco à frente da porta. Era usado por familiares à espera ou por ocupantes do hospital que saíam para fumar. Pasmem.. internos a fumar!
Chegava-se ao hospital por uma rua que serpenteava a montanha. A rua era um rastro no meio da floresta. Servia para ir até o hospital ou para deixar os turistas que se embrenhavam pela mata a fazer as trilhas que ali se iniciavam.
Bem em frente ao hospital, havia uma paragem de bus. Pouco usada, mas algumas vezes por dia, passava ali o bus que trazia e levava as pessoas de volta para a vida que se desenrolava lá embaixo.
Às vezes, sentava-me ali na paragem, por uns minutos, a apreciar o cenário daquele ponto. Havia uma elevação à frente, relva irregular que levava a uma capelinha no final da elevação. Um banco em frente à capela, às vezes ao lado. Os ocupantes mudavam a posição do banco de acordo com o sol, acredito.
Subia a elevação com o auxílio da minha canadiana. Ia devagar, com cuidado e sentava-me no banco por bastante tempo, não sei se minutos ou horas. A paz do local, o recolhimento que o silêncio estimulava, eram-me muito terapêuticos. Levava um livro e demorava-me ali, a ler, a sonhar, a sentir a aragem da floresta, os ruídos dos pequenos animais escondidos ao redor.
Sentia que ali estava na minha Montanha Mágica.
Passava mesmo a maior parte do tempo, caminhando dentro e fora do hospital. Sabia que devia andar. No primeiro dia, desavisada, andei sem qualquer apoio, dois dias depois de ter sido colocada a prótese na minha anca direita. Ao final do dia, depois de muitas idas e vindas, uma enfermeira assustou-se e assustou-me ao ver-me andar sem apoio. No dia seguinte tinha um carrello à minha disposição e passei a andar empurrando aquele objeto de rodas.
A perna operada tinha o dobro da outra, estando assim duplicado também esse lado dos glúteos. Vestia um short enorme para que coubesse esse volume inesperado. Devia ser uma visão infernal.
O carello durou poucos dias, o fisioterapeuta ainda na mesma semana, liberou-me para andar com canadianas ou o que chamamos de muletas. Muito melhor, mas a pele entre o polegar e o indicador ficava muito machucada. Mesmo com um forro, ainda era bastante desconfortável. Pouco tempo fiquei com ambas canadianas. Por indicação do fisioterapeuta, passei a usar apenas uma. Subia e descia escadas devagar, mas sem qualquer dificuldade.
Eu era mesmo a melhor performance na sala de exercícios. Não digo isso por vaidade, mas por sentir que meus esforços anteriores deram-me uma grande vantagem no tempo de recuperação.
Sentia-me bem naquele lugar. Enfermeiras com atenção diária sobre mim, medicação para dor, bolsa de gelo, ajuda para higienizar-me..
Apesar das dores intensas e constantes, não teria sido uma experiência tranquila, se não tivesse tido o tempo todo a presença de minha filha mais nova. Levava alguma comida que preparava para mim, guloseimas, sucos, frutas. Não conseguia dar conta de tudo. Um dia a enfermeira mais carrancuda disse que parecia um mercado a mesinha a meu lado e pediu para guardar tudo no armário embaixo. Senti que era uma ordem.
Minha filha também ajudava-me a banhar-me, o que era uma atividade extenuante, com as meias cobrindo as pernas, sem poder tirar ou molhá-las. Acabávamos em risos, porque era mesmo uma cena muito engraçada.
Desde que cheguei nesse quarto, quando entravam, alguns dos enfermeiros, diziam sempre, três Marias, só falta o panetone. Ninguém dizia nada e eu ficava na mesma. Depois de uns dias, já me sentia bem o suficiente para perguntar o que significava.
A resposta foi mais simples do que imaginava. Havia um panetone muito famoso cujo nome era Três Marias. Assim o que faltava mesmo ali era o panetone.
Oeiras
21 de novembro de 2024
Um ano, três meses e 12 dias depois da cirurgia.
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